Se você acompanha nossa Bee News já deve conhecer nosso projeto Maternidades Diversas, que tem o propósito de promover a diversidade e construir um maternar anticapacitista, antiracista, antilgbtfóbico, antitransfóbico, antimachista, antigordofóbico, e anti tudo que o diminua e o impeça de ser essa potência transformadora. Com esse gesto desejamos quebrar barreiras, dentro e fora de nós, principalmente aquelas que nem sabemos que existem.
Nesse caminho seguimos buscando amplificar vozes e mostrar realidades diversas, contadas pelas mulheres que são as protagonistas de suas histórias. Com isso, temos a honra e grande alegria de ter a participação da Zahy Guajajara, Mulher-Lua, mãe de Kwarahy (sol). Zahy é do povo Tentehar-Guajajara, nasceu na Aldeia Colônia, Reserva Indígena Cana Brava no Maranhão. Aos 9 anos passou a viver entre sua aldeia e a cidade de Barra do Corda, onde foi alfabetizada. Aos 19 anos saiu pela primeira vez de sua terra para morar no Rio de Janeiro.
Na nossa conversa Zahy relata sua vivência como mãe, seus desafios, angústias, alegrias, aprendizados diários. Nos alerta, por sua experiência traumática, a desumanização na assistência e atendimento às mulheres durante o parto em um hospital. Ressalta a importância da comunidade no cuidado coletivo dos filhos em uma aldeia indígena. E ainda nos traz a reflexão sobre o sentido da educação na sociedade.
Zahy relata que a gestação foi tranquila, ela se manteve ativa durante todo período. Porém, destaca que o desafio foi ter engordado muito, 30 quilos, com isso se sentia muito pesada para a estrutura do seu corpo. Houve a dificuldade de estar longe do marido, que estava morando em outro país durante a gestação e veio para o nascimento do filho. Atualmente Zahy se mudou do Brasil e vive com o marido e o filho em outro país. Sentiu falta também da assistência da família, que está no Maranhão, especialmente da sua mãe. Mas teve o apoio de amigos, especialmente durante o último mês de gestação, que foi longa, de 42 semanas.
O parto, que aconteceu em um hospital público no Rio de Janeiro, foi uma experiência traumática para Zahy, o trabalho de parto foi longo e doloroso. Ela sentiu muita falta de uma assistência humanizada e respeitosa, que garantisse a liberdade e protagonismo da mulher. “Pediram que eu fizesse silêncio, me acalmasse mesmo estando em um trabalho de parto longo e doloroso, para não atrapalhar os outros, estava numa situação vulnerável, sem o mínimo de privacidade. Situação muito traumatizante para qualquer mãe, especialmente para mim, de primeira viagem”.
Em conjunto com a frustração de não ter podido realizar a sua vontade de ter voltado para aldeia, estar junto da sua mãe e sua irmã, para o parto com uma parteira da comunidade, como sua mãe que era pajé e parteira. Ela ressalta sobre a falta de respeito e humanidade vividos nessa experiência: “Nem por ser indígena, o que é mais grave ainda, por ser mulher”.
Na amamentação também houveram desafios, pois ela tem mamas acessórias, que se localizam na região das axilas, e também produzem leite. Houve muita dor no início da amamentação, seus seios ”empedraram”, incluindo as mamas acessórias, além disso, os procedimentos no hospital para “desempedrar” foram muito dolorosos. A primeira semana foi no hospital, o seu filho teve perda de peso e icterícia.
Por ter um filho autista tem medo que seu filho não seja independente o suficiente “Mesmo que a gente pense que estaremos aqui para ajudar durante o nosso período de vida, temos esse receio, esse medo, que aconteça alguma coisa e meu filho fique sozinho”. “Tenho medo da rejeição, da falta de empatia da sociedade. Já tive muitos momentos com meu filho que foram muito difíceis, apesar do grau dele de autismo ser mais leve a moderado”.
Zahy relata conflitos em momentos de convívio social, como em parquinhos, de pais de outras crianças cobrando um comportamento como esperar em uma fila, que é algo que não é compreensível para ele. Em resposta a uma mãe de outra criança, Zahy traz uma reflexão: “Nem tudo gira em torno de uma má educação, meu filho não entende palavras, comandos, orientações, é muito difícil para nós e para o nosso filho. Você que é mãe de uma menina que compreende e fala deveria ser um pouco mais empática às limitações de outras crianças”. Essas situações trazem muitas angústias e medo em relação ao filho. “Infelizmente vivemos em uma sociedade que precisa se informar, se reeducar”.
“Como pais a gente quer estar perto, quer ajudar, mas também quer que ele seja independente, porque a gente sabe que a sociedade obriga e precisa que sejamos fortes e independentes na vida, que a gente saiba se virar”
“Ao mesmo tempo que eu digo que há dificuldades por ser a mãe de uma criança autista. Mas ser mãe de uma criança autista me ensinou muito sobre a vida, me reeducou também como Ser Humano”.
“E quando eu digo que minha vida mudou completamente depois de ter me tornado mãe. Na verdade, ter me tornado mãe me salvou também. Meu filho tem algumas peculiaridades nele, ele é tão “ingênuo”, e ao mesmo tempo tão incrível, ele é muito focado. Ao mesmo tempo que tem suas limitações, que dificultam a viver na sociedade que vivemos hoje. Por outro lado, me faz enxergar que eu preciso disso na minha vida, que eu preciso focar, eu preciso seguir em frente sem estar presa a querer olhar para trás, pois se eu não fizer isso, talvez eu não consiga sobreviver nessa vida”.
“Meu filho me ensina muitas coisas, o fato dele não falar me traz questionamentos sobre mim mesma. Eu tenho uma ligação muito forte com meu filho em relação a isso, eu fui uma criança muito tímida, lembro que na minha infância nos meus primeiros anos no colégio eu quase não tinha amigos, quase não falava com outras crianças . E já na adolescência eu me desenvolvi muito bem, fiz muitos amigos, saía, brincava, jogava futebol, vôlei. Então eu tenho essa esperança também que meu filho vai crescer e as coisas vão melhorar”
‘E um filho ensina a gente a ser mãe, todo dia venho me ajudando para ser a melhor mãe possível para o meu filho. Mas na verdade é ele que me ensina a ser a melhor mãe para ele”.
Zahy relata que os seus irmãos que vivem na aldeia têm muitos filhos e o cuidado é coletivo. “Os filhos deles são criados por todos, todos tem uma função de estar ajudando a criar e educar os filhos uns dos outros. Ali as crianças são livres, então chega o filho do vizinho e vai para casa do outro e passa o dia lá, e a mãe não necessariamente precisa se preocupar. Ali é uma comunidade onde todos vivem juntos. Eu não vou dizer em harmonia, pois é uma visão romantizada, de que viver em uma comunidade indígena é um paraíso, são pessoas, humanos com seus conflitos e harmonia como qualquer outro grupo . Mas eu vejo um grupo em que essa comunidade se ajuda entre eles, então também ajudam os filhos dos outros”.
“O termo educação não existe dentro de uma comunidade, os valores são diferentes do que é educação na cidade. Esses valores na cidade são muito cruéis. Porque se o teu filho não segue uma norma, por exemplo se ele não fala obrigado e não diz com licença, é mal-educado e os pais não sabem educar seus filhos”.
“A educação está relacionada aos valores de cada um, da nossa história de vida e etc… se alguém chegar numa aldeia pedindo licença ou falando obrigada, certamente vai sofrer bullying rsrsrs porque vão rir e achar graça, no máximo ao invés de um com licença se ouve “deixa eu passar” e ao invés de obrigado se ouve um “ tá bom”. Estou sendo obrigada a ensinar meu filho a ser “educado” com os valores de uma sociedade que se acha superior a qualquer outra pelo fato de que ele possa também viver de maneira digna”.
Texto: Simone Ximenes – IG: @simone.xmn
Mãe da Júlia, bióloga, educadora ambiental. Participante da turma 9 do zum zum de mães. Atualmente é colaboradora na Bee Family no Programa de Bolsistas e no projeto Maternidades Diversas.
Fotografia: cedida pela própria Zahy Guajajara.