Falar sobre gerações anteriores à minha me pareceu um pouco ousado a princípio, pois como falar daquilo que não vivi sem ser arrogante e sem julgamentos. Porém falo das percepções que precisei elaborar dentro de mim mesma para poder entender minha própria vida e história, a forma como fui criada, a forma como meu companheiro foi criado, e o quanto isso impacta na nossa relação e na criação da nossa filha.
Quando comecei a trilhar o caminho do autoconhecimento e remexer nas feridas infantis, a entender como cenas do meu passado haviam me impactado e como elas foram determinantes em alguns comportamentos “negativos” que eu apresentava, como outras tantas experiências da minha primeira infância ajudaram a formar minha personalidade e os aspectos destrutivos dela, a primeira reação foi me colocar num lugar de vítima e de muita raiva.
Quando eu fui entendendo que algumas das fortes emoções “negativas” e medos que a maternidade trouxe à tona vinham dores da minha criança interior ferida desencadeadas por choros contidos, frustrações não validadas, falas marcantes dos meus cuidadores, falta de acolhimento nos momentos de medo e solidão segundo as minhas expectativas, baixa autoestima na infância e adolescência, foi impossível não julgar meus pais, alguns professores e outras figuras que fizeram parte desse período da minha vida.
Já os culpei por tudo de ruim que estava me acontecendo naquela fase, por não terem “me dado aquilo que eu precisava”, posteriormente me culpei por tê-los julgado, por sentir raiva, por sentir pena, por me sentir melhor, e hoje, entendo que o julgamento é natural quando entendemos todo o mecanismo de formação da personalidade e como nossa psique é moldada e impactada pela forma como fomos criados.
Entendi que a culpa, essa estrutura que a meu ver tem um papel importante inicialmente, não podemos negá-la pois ela também faz parte do processo, o que não podemos é nos fixar nela. Porém tanto culpar nossos pais, como posteriormente nos culparmos por culpá-los é instintivo. Isso aconteceu comigo, porém eu percebo que quanto mais consciência fui tomando dos meus processos, mais fui entendendo que nem meus pais nem ninguém tinham culpa de nada, mas inconscientemente eu transferia essa culpa para mim mesma.
Hoje vejo essa culpa ao mesmo tempo como uma defesa e uma resistência à mudança, porque mudar dói. E tudo bem culpar e sentir culpa, se você estiver nessa fase do caminho, prossiga, ela pertence e te garanto que vai passar. Não reprimindo a culpa, podemos transpô-la com consciência.
Nas minhas buscas terapêuticas, descobri, por exemplo, que o choro da minha filha me incomodava por causa do choro e raiva reprimidos na minha infância, não só porque meus pais podem ter “calado” meu choro e explosões de raiva algumas vezes, usando falas pré-estabelecidas que a sociedade da época consideravam certas, e ainda hoje muitas pessoas consideram apesar de todas as pesquisas científicas que já provaram o contrário. Não sou melhor do que ninguém e nem estou isenta, também carreguei essas crenças e falas comigo, e já usei com minha filha, falas como: “engole o choro”, “isso não é choro, é manha”, “vou te dar motivo pra chorar”, “chorar é feio”, “não pode ter raiva da mamãe-papai”, “Papai do céu não gosta de criança que chora”, “ninguém gosta de criança que chora”, “sentir raiva dos pais é pecado”, e por aí vai.
Atualmente, é fácil acessar informações científicas e entender no nível consciente e mental que deixar a criança chorar e se deixar levar pela energia da raiva faz bem pra ela, ajuda a limpar o “lixo emocional”, e é o ideal para ela crescer mais conectada com os próprios sentimentos e desenvolver inteligência emocional. Que acolher o choro da criança refletirá na sua saúde emocional quando ela for adulta, a fará entender que o sofrimento e a frustração fazem parte da vida, mas que ela nunca precisará sofrer sozinha pois pode contar com o apoio dos pais, da família, redes de apoio, criando assim resiliência ao sofrimento. Que deixar uma criança colocar toda sua raiva pra fora e ir ajudando ela a se acalmar, a ensina sobre autorregulação e autocontrole. Até aí, ok!
Mas se tem algo que demorei pra entender é que quando a criança tem uma explosão emocional de qualquer nível, nos fazendo acessar nossas próprias emoções feridas, não há conceito teórico científico que possa ser aplicado se o nosso emocional estiver abalado. Não há ferramenta de disciplina positiva que funcione se a criança estiver nos espelhando em nossos próprios conflitos emocionais e não nos dermos conta, a única ferramenta que resolverá será analisar e sanar a origem do conflito em nós para limpar do nosso campo o que é nosso, e podermos olhar genuinamente pra emoção da criança no momento presente e acolhê-la.
Para mim está provado, por minha experiência, que uma coisa está intimamente ligada a outra, pois quando o comportamento desafiador da minha filha traz sensações em mim como raiva, revolta, medo, dor, sei que não sinto tudo isso por causa do comportamento em si, mas sim em razão de emoções minhas que aquele comportamento dela desperta em mim, trazendo algo meu, e não dela. Quando ela tem um momento de explosão, e eu não consigo encarar sem levar pro lado pessoal, sem pensar coisas como “eu não aguento isso”, “ela quer me enlouquecer”, “chora por nada, ou chora por tudo”, (eu já pensei todas elas e às vezes ainda penso), quando levo pra esse lado, sei que ali alguma ferida minha foi acessada e geralmente as falas usamos são as mesmas que usaram conosco na infância.
Conforme fui olhando pra esses sentimentos que eram despertados, e de certa forma fui integrando-os à medida que me policiava e me acolhia quando esses sentimentos vinham, os mesmos comportamentos de antes não incomodavam mais, eram apenas algo que eu lidava com tranquilidade. Devagar, quando ela chora, e eu estou bem comigo mesma, eu trago pra mente que ela é apenas uma criança, e que o choro é uma expressão emocional que a ajuda a se sentir melhor quando passa, e que aquilo não é pessoal. Não sou técnica no assunto, nem quero provar nada, pois esse trabalho já tem sido feito pelos especialistas da área, mas toda essa dinâmica eu aprendi nos meus estudos pessoais e terapias, pode ser explicada com uma pesquisa específica na internet e em muitos livros. Eu mesma, leio muitos livros sobre maternidade, autoconhecimento, relações humanas, psicologia do desenvolvimento, primeira infância.
Quando eu era criança, vejo que muitas vezes o choro era encarado como sinônimo de vulnerabilidade, “manha”, fraqueza, falta de controle sobre a criança, falta de “pulso firme”. Portanto, os pais que não educavam seus filhos seguindo esse princípio, eram considerados como fracos, “maus pais”. Ao pedir para pararmos de chorar, nossos pais acreditavam estar nos dando a melhor educação, e assim também foi com eles quando eram crianças, e assim sucessivamente. Se voltarmos um pouco no tempo, teremos acesso à informações que desconsideravam totalmente a infância e o querer da criança praticamente não existia.
O que pra mim foi inicialmente visto como falta de empatia pelo meu choro na infância, com o tempo pude compreender que meus pais estavam tentando me dar o melhor. O choro foi o exemplo que quis trazer pois foi e ainda é algo que “pega” muito pra mim no meu maternar, que já pude melhorar bastante, hoje consigo acolher mais a minha filha nesses momentos de choro e raiva, geralmente com mais eficácia quando estou mais tranquila e mais nutrida emocionalmente.
Mas quando estou vivendo minhas próprias crises, tendo meus picos emocionais, como no período pré menstrual que fico mais sensível, haja paciência e empatia pra acolher o choro, a vontade é de calar e não acolher, sou sincera em dizer que em muitos momentos desses toda teoria vai pro brejo. Nem sempre estaremos bem para não misturar as coisas e levar pro lado pessoal, é um trabalho de formiguinha, dia a dia. Um dia será melhor, o outro menos, e assim caminhamos comemorando as pequenas vitórias e driblando a culpa que possa surgir nos momentos difíceis. Até porque a busca não é pela perfeição, acredito que mostrar uma falsa perfeição para nossos filhos fará com que eles cobrem de si mesmos a mesma perfeição e sofrerão por nunca alcançá-la, pois nunca seremos perfeitos nessa vida.
Por isso que acho que mesmo com toda informação que temos, não vamos acertar sempre, e ainda assim, não somos melhores que nossos pais, pois a informação não basta, a informação sem o autoconhecimento e a nossa reeducação é ineficaz e ilusória. Não há educação sem autoeducação. Claro que muitos adultos viveram em famílias disfuncionais, e talvez não concordem com o que estou trazendo, pois sei que tive o privilégio de ter uma família estruturada e amorosa.
Vejo que meus pais fizeram o que eles podiam com a consciência que tinham e repetindo a criação que tiveram, que hoje não me permito usar adjetivo nenhum para qualquer que seja o tipo de criação em questão. Acho que tudo precisa evoluir, e se está evoluindo está tudo certo. Não tem nada de errado, nem antes nem agora. Eles nos deram o que receberam. Fizeram o melhor que puderam, e por mais difícil que seja, pois sei que fácil não é, além de qualquer falta que tivemos, eles nos deram o dom maior da vida, que vinda deles e com as informações e apoio profissional que temos hoje podemos fazer melhor da vida que recebemos deles.
Acredito que mesmo nas famílias desestruturadas tudo se trata de uma grande repetição onde ninguém é culpado e ninguém é vítima, todos escolhemos a família que precisávamos, para um propósito maior. Acreditar nisso me trouxe paz. Não quero impor minhas crenças neste texto, só acho que precisamos encontrar uma crença que nos faça sentir paz, se nosso coração sente que aquilo é verdade, e se acalma naquela crença, com certeza pra ele é verdade, e isso que importa.
A verdade é que cada pessoa lida como pode com suas feridas e traumas, inconsciente ou conscientemente dá apenas o que recebeu na criação dos seus filhos, essa máxima vale para as gerações anteriores também.
Nesse momento gostaria de direcionar esse olhar empático para geração dos meus pais, que é a geração que diante de tantas informações e estudos novos sobre criação de filhos, por muitas vezes se sente incompreendida, não validada, que quando veem como hoje aderimos a tantas mudanças, informações diferentes e novas na forma de criar e educar nossos filhos, se sentem até mesmo ofendida, podendo sentir que se concordarem com tudo isso que estamos optando estariam assumindo o próprio fracasso.
Não há certo ou errado, há evolução. Há informações que podem colaborar com maior saúde física e emocional para as próximas gerações, mudanças alimentares, mudanças de atitude. Mas ainda assim, cada um só consegue aplicar aquilo que sua estrutura emocional permite, e tudo bem! Como disse antes, temos que evoluir, rápido ou devagar, aos poucos e a vida toda, pela nossa própria cura, e pela cura dos ancestrais e descendentes, pois com certeza nossa cura é a deles.
A minha mãe não teve carreira, nunca foi assalariada, criou cinco filhos de idades próximas com marido trabalhando em outra cidade em alguns momentos, com rede de apoio familiar limitada a como podiam ajudar. Com tanta demanda física, emocional, doméstica, dificuldades financeiras, fez o melhor que pôde com a estrutura que tinha, e hoje tenho consciência que me deu exatamente o que eu precisava pra ser quem sou, tive as experiências que definiram meus valores e aprendizados atuais e me fizeram ser quem eu sou.
Quando era cultural ter vários filhos, hoje eu com apenas uma filha tive tantas questões emocionais que muitas vezes me colocaram em desespero e pânico, imagino ela com cinco e tendo que lidar com tudo ao mesmo tempo… Eu tive ajuda profissional para lidar com minhas questões, ela não teve. Hoje é tão fácil ter acesso a terapias on line e presenciais com valores acessíveis, ainda bem que existem muitos profissionais disponíveis no mercado, e hoje existem terapias excelentes específicas para mães com rede de apoio, como o Zum Zum de Mães, que expandiu minha mente, me ajuda e ajudou demais.
Por tantas vezes me senti impotente diante de todas as coisas que tenho que lidar fora à maternidade, estar disponível emocionalmente e ainda assim ter que trabalhar fora, cuidar da casa, das roupas, proporcionar uma alimentação balanceada pra minha família, por tantas vezes tenho a sensação de estar caindo num poço sem fundo… Mais uma vez, imagino como foi pra minha mãe com cinco filhos e mesmo não trabalhando fora, como ela deve ter se sentido impotente em tantos momentos, achando que ia enlouquecer com tantas responsabilidades, e isso me faz sentir empatia pelos momentos em que ela explodiu comigo e meus irmãos, e mais do que isso, empatia genuína por ela.
Só pude entender e ter mais empatia pela minha mãe quando me tornei mãe. Antes, por melhor filha que eu fosse eu não poderia ter entendido tudo que a maternidade traz para nossa vida, sem sermos avisados, levando nossa identidade e o que entendíamos como vida antes dela, muitas vezes adiando nossos sonhos, projetos, desejos, nossa própria liberdade. Vejo que muitas mulheres passam a vida tentando resgatar quem eram e não conseguem, e para as gerações anteriores era mais difícil ainda por tantas questões sociais ligados ao patriarcado, a falta de liberdade financeira, a falta de voz e olhar sobre essas questões.
Se hoje é mais fácil pra nós, é porque as gerações que nos antecederam abriram os caminhos e doaram suas vidas para que fosse mais fácil para nós, tanto para vivermos quanto para criarmos nossos filhos nesse momento que estamos. Eles sacrificaram sua liberdade para nos dar a liberdade que temos hoje. Somos privilegiados.
Volto a falar, quem viveu em famílias disfuncionais talvez discorde do que trago aqui, mas o dom maior eles nos deram: a vida!!!
Chega de julgamentos e comparações pelas diferenças de antes e agora, antes havia uma informação, hoje há outras mais embasadas cientificamente, mas não por isso melhores ou piores, apenas encaro pelo lado de que junto com a humanidade, os conhecimentos evoluíram e mesmo que os conhecimentos sejam bons, se nos colocamos num lugar de saber mais que nossos ancestrais, seremos arrogantes e não gratos ao que foi da forma que foi, e isso gera sofrimento. Aceitar tudo como foi nos traz paz!!!! Mas não é de repente que conseguimos, é um longo e doloroso processo que requer muita coragem, mas que precisa começar em algum momento.
Da mesma forma que chamo a atenção para nossa geração ter mais empatia pelas anteriores, também apelo que essas gerações que vieram antes tenham empatia por nós, pois quando optamos em fazer diferente baseados em estudos e informações que hoje temos acesso, não o fazemos para descreditar tudo que vocês fizeram de diferente de nós e muito menos para ofendê-los, o fazemos pensando em fazer o melhor para nossos filhos, assim como vocês também fizeram tudo que puderam para dar o melhor que puderam para nós.
Persistir nessas discussões é uma luta sem vencedores, eu honro tudo aquilo que recebi da forma que foi, e agradeço a todos meus ancestrais por absolutamente tudo. Peço a benção deles para que eu possa agir diferente deles na minha forma de maternar e de viver a minha vida com mais consciência e leveza. Que assim seja!
SOBRE A AUTORA:
NATALIA CAMILA DA SILVA: 32 anos, mãe da Olívia de 3 anos, Participante da Turma 5 do Zum Zum de Mães, Funcionária Pública, Gestora de Recursos Humanos, adepta do Sagrado Feminino. Escreve para elaborar suas emoções, só de escrever se sente mais leve e mais inteira.
IG: natycamila87