As Mulheres

Era um dia típico de trabalho, no final da tarde fui informada que seria indicada para uma viagem de campo na Escócia! Primeiro um frio na barriga e a sensação de iminência de perigo, talvez o alerta tenha sido fruto do instinto de fêmea mamífera, ou à tradicional culpa materna, ou quem sabe meus velhos padrões e crenças ainda em desconstrução… Seja lá o que foi, olhei, acolhi, senti, compreendi e enfim me permiti curtir a ideia!

Alguns dias depois tivemos uma primeira reunião com os instrutores e todos os indicados ate então, o primeiro assunto que trataram foram as datas, estava lá contido naqueles 10 dias, o domingo do dia das mães, pensei: “Tudo bem se nós não enfatizarmos a data em casa, minha filha não vai nem perceber”. Me concentrei de novo na reunião e de repente me veio à cabeça o calendário da escola, lembrei vagamente de ter visto uma apresentação das crianças para o dia das mães, diferente do ano anterior que só teve comemoração do dia da família. Procurei nos meus arquivos do celular e lá estava o calendário, com a apresentação marcada bem no meio da semana que eu estaria fora! Pensei comigo: “Não vou mais! Vou dar um jeito de fugir dessa vez!”

Com a voz tímida e com pouca esperança, alertei que a data pegava o dia das mães. “Ichi é mesmo” disse um colega, que em tom de brincadeira completou: “Ah, minha mãe vai entender!” Na sala haviam uns 7 homens e 3 mulheres contando comigo, dentre as mulheres só eu era mãe, porem nessa hora as outras duas também estavam apreensivas, talvez pensando em suas próprias mães. Além de indicadas, ambas estavam na organização de questões práticas e burocráticas do campo, virei para que estava ao meu lado e disse baixinho: “Isa, vou perder a apresentação de dia das mães na escola da minha filha.” Ela me olhou com toda a empatia de quem entendia a situação, interrompeu imediatamente um dos instrutores perguntando se havia alguma possibilidade de mudar a data, ele respondeu que sentia muito, mas a janela de clima era apertada e já tínhamos reservas na hospedaria em uma das ilhas, que o mês de maio era o mais concorrido e eram poucas as opções de hotel na região. Do outro lado da mesa, a terceira mulher ainda me olhava apreensiva, a reunião seguiu, meu desconforto persistiu até o final.

Terminada a reunião, os comentários e olhares, mesmo dos amigos que tinham filhos, eram de incompreensão, como se fossem coisas diferentes de mais em termos de importância para serem comparadas. Quando disse que existia a possibilidade de eu não ir por causa disso, pelas reações deles, percebi que não tinham noção da magnitude do meu dilema. Eu entendo, eles queriam que eu fosse, afinal uma oportunidade profissional dessa! Entendo que, do jeito deles, era uma tentativa de ajudar, de me motivar a não “desistir”. Mas quando me tornei mãe, sabia que em alguns momentos eu teria que abrir mão de alguma coisa, não poderia ter tudo sempre, e vamos combinar aqui entre nós, abrimos mão de tantas coisas, desde a gestação, são incontáveis as situações, vamos nos acostumando, vamos criando uma resiliência absurda em relação à isso…. Acho que eles jamais entenderiam.

Cheguei em casa e desabafei com meu marido, ele disse que daríamos um jeito, mas que eu não devia abrir mão dessa oportunidade, sugeriu simplesmente dela não ir na escola no dia da apresentação e pronto! “Mas meu Deus e os ensaios, e os presentes que ela mesma vai fazer?” Sim, essa poderia ser uma das soluções, mas não seria fácil, já é difícil para ela quando eu viajo e ainda mais numa época dessa! Entendo que foi o jeito dele de me apoiar, mas ainda me sentia solitária  na minha duvida cruel! Senti raiva, esbravejei: “Como podia ser tão simples e racional para eles? Para todos eles?” Fui para o quarto me sentindo incompreendida, lembrei da solidariedade nos olhares das duas outras colegas e isso por hora me confortou!

As mães 

De repente caiu uma ficha: “É isso! Outras mulheres, as mães da escola, e se eu dividisse com elas? E se elas me apoiassem e se pudéssemos mudar a data da festa na escola?  Sem duvida elas me entenderiam.” Falei primeiro com as que eu tinha mais intimidade e elas foram simplesmente maravilhosas, falei de como eu me senti, elas foram tão empáticas, algumas compartilharam comigo situações parecidas e algumas bem piores no ambiente de trabalho. Percebi como ainda é muito complicado para nós mulheres assumirmos esses dois papéis, como que ainda dói, como que ainda estamos divididas sendo metade em cada um deles, quase nunca inteiras…

No dia seguinte, conversei com a secretária na escola, descobri que a festinha ia ser pequenina dentro da sala de aula mesmo, que provavelmente não haveria problema nenhum em mudar a data, mas que era preciso falar com a coordenadora, que dias depois me recebeu com um sorriso no rosto, dizendo que se todas as mães concordassem, a escola estaria disponível para a data que combinássemos. Na reunião escolar de início de ano letivo, pedi a palavra e expliquei a situação para cerca de 20 mães, duas eu tinha acabado de conhecer, mas elas foram unânimes em topar de cara a mudança de data. Agradeci com todo meu coração, cheguei em casa leve e foi só aí que comecei a me preparar e me animar para a viajem.

Os caminhos sagrados

Os meses passaram e voei para longe, meus pés pisaram no lugar mais incrível que meus olhos já viram, aprendi muito, os instrutores eram os três vulcanólogos mais famosos da Terra, a geologia do lugar é única e a paisagem de tirar o folêgo, que privilégio eu tive.

O Frio atípico da primavera, sussurrou no meu ouvido histórias remotas, de uma civilização nativa que honrava o sagrado feminino, que assumia e enaltecia a força feminina em total equilíbrio e equidade com a masculina, que entendia as duas forças como complementares e harmônicas, como essências da própria natureza! Andando pelos mesmos caminhos que elas, senti a força daquelas mulheres que dançavam para lua, que abençoavam os ventres, que reverenciavam seus ciclos e os ciclos da natureza, do dia e da noite, das estações do ano, do plantio e da colheita, mulheres que estavam conectadas com o todo, sacerdotisas do próprio poder, de todo o poder que a condição feminina oferece, de intuição, de predição e da criação. Como deve ter sido incrível viver em uma sociedade estruturada para que as mulheres também atingissem todo seu potencial, onde elas se reconheciam poderosas e sagradas.

Depois de termos esvaziados nossos potinhos de pedras coloridas, como da outra vez (https://beefamily.com.br/percorrer-muitos-caminhos/), depois do vento frio e a chuva fina gelarem minha pele e meus ossos, voltei para casa com o coração aquecido de amor, com a mala cheia de presentes e historias, olhei tudo com olhos de primeira vez. Abracei cada pedacinho dos meus amores, dormi abraçadinha com eles e cheirando os cachinhos da minha florzinha!

 As sacerdotisas 

Dias depois estava eu na porta da escola, esperando ansiosamente dar 18h para ver o sorriso e a dança da minha pequena, outras mães também foram chegando, uma balburdia danada, beijinhos e abraços para cá, conversas animadas para lá, uma excitação deliciosa, formando uma egrégora poderosa de alegria.

Fomos convidadas a subir, nos degraus das escadas, pegadinhas coloridas com os nossos nomes nos indicavam o caminho até à sala de aula, paramos diante da porta, a professora saiu para nos receber, um pouco tensa ela disse: “Meninas temos um problema! Tem uma mãe presa no transito, o que faremos? A decisão é de vocês.” E mais uma vez, elas, nós, fomos unânimes em um sonoro: ” Vamos esperar!” Uma de nós disse algo do tipo: “Vamos esperar todas, não vai ficar ninguém de fora, não quero nenhum rostinho triste hoje.” Fiquei ali, olhando extasiada aquelas mulheres incríveis, gentis e fortes, algumas fugidas literalmente dos seus escritórios/consultórios/chefes, ansiosas com o coração em festa, esperaram mais de uma semana por mim e pareciam ainda dispostas e felizes em doar mais alguns minutos de seus preciosos tempos por outra mãe.

A última mãe chegou enfim, pediu desculpas em chinês, nem sei se ela fala a língua portuguesa, mas foi recebida com sorrisos, que são universais. Entramos todas em fila indiana, os pequenos gritaram por nós quando nos viram, uma delícia a alegria contagiante daquelas fofuras. Nunca vou esquecer os olhos brilhantes da minha filha quando me viu, ela estava radiante de felicidade, sentamos de frente para o semicírculo que as crianças formaram e eles começaram a dançar enfim: “…Coisa linda, estou onde você está, não precisa nem chamar… Ah se a beleza mora no olhar, no meu você chegou e resolveu ficar, para fazer seu lar…” A Ive com flores no cabelo cantou e dançou lindamente, fazendo todos os gestos e passos olhando para mim, olhos nos olhos, o mundo parado lá fora, lágrimas escorregaram pelo meu rosto, mas não desfiz o sorriso nem um segundo sequer! E mesmo sem desviar os olhos da minha filha, pude perceber e sentir todas as outras lágrimas, molhando todos os outros sorrisos, nos rostos de todas aquelas mulheres emocionadas ao meu lado.

Mais uma vez pensei nas mulheres das tribos celtas, imagino que elas eram desse mesmo jeito, conectadas ao coletivo e ao mesmo tempo à si mesmas, vibrando pela alegria das suas crias e também pelas crias das suas irmãs. Que alegria e que honra celebrar aquele dia ao lado delas, para mim não era uma celebração do dia das mães, dia das mães é uma data comercial, dia das mães é todo dia, para mim era uma celebração da maternidade, intensa e transformadora que me arrebata de amor e cansaço todos os dias, uma celebração do amor e do vínculo que construímos com nossas crianças, dia a dia, as duras penas e  contra todo o sistema. Me senti grata por ter encontrado, nos dias de hoje, essas mulheres sagradas. Por causa delas, por causa dessa tribo, eu pude pelo menos dessa vez ter tudo, pelo menos dessa vez eu não precisei abrir mão de nada, não tive que escolher, não precisei viver nada pela metade, tive as duas experiências inteiras e incríveis.

Esse texto foi escrito por: Vivian Pessoa,  Mãe da Ive de 3 anos, Geóloga, Participante da turma 5 do Zum Zum de mães, Educadora Parental pela Positive Discipline Association.

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@viviancpessoa

 

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