Certo dia, nesses tempos de pandemia, numa tarde de 40 graus, meu filho me chamou para brincar com ele de escorregar na varanda, bem do jeitinho que eu fazia, quando criança, na casa de minha avó, ela jogava água e sabão para lavar o alpendre e a gente se acabava de escorregar para lá e para cá. E eu, que andava por aqueles dias com a consciência um tanto pesada por estar muito envolvida aos afazeres acumulados, que nestes tempos de isolamento social sobrecarregaram ainda mais, resolvi aceitar o convite.
Jogamos água com sabão na varanda e ele imediatamente se jogou, sem medo de ser feliz! Eu meio desajeitada, constrangida até… me abaixei devagar, sentando-me no chão e me molhando aos poucos, sem saber muito como fazer. Ele estava tão alegre e satisfeito que nem percebeu a minha falta de jeito. Lentamente, fui me entregando à inteireza daquele momento, mesmo que os pensamentos me prendessem ao mental, como por exemplo, me notar preocupada em não molhar a cabeça, pois o sabão iria danificar o meu cabelo, e algumas vezes me sentindo como uma baleia encalhada tentando se movimentar, tamanha a minha falta de leveza na brincadeira, era como se o meu corpo não encontrasse espaço para o que ali acontecia.
E a partir do momento em que eu me entreguei, eu me diverti – ainda que parcialmente, pois o cabelo eu não molhei – escorreguei de barriga com ele de um lado para o outro, demos trombadas, rimos bastante e de repente o tempo parou por alguns instantes. Meu filho mais velho, que tem 12 anos, aproximou e ao ver a cena ficou desconcertado, olhou para mim e perguntou: “mãe, mas o que é que você está fazendo?”. Meu coração apertou ao perceber que ele já com o pé na adolescência, começara a dissolver a inocência, esse sentimento tão puro que possuímos na infância, que nos faz tão inteiro no nosso querer. Ao fim do dia, eu me percebia sentindo de outro lugar, experimentando outra qualidade de emoção, como se um sorrisinho leve me acompanhasse, principalmente quando lembrava da brincadeira. Minha alma estava ali, presente, brincante.
Esse episódio tornou-se objeto da minha auto observação por alguns dias, é impressionante como a vida adulta nos endurece, praticamente somos desconfigurados e desligados da infância, como se uma régua passasse em um determinado ponto da nossa biografia e pronto, agora chega de brincadeira que a vida é séria! O contato com uma criança nos proporciona infinitas oportunidades, e a possibilidade de subverter o nosso enrijecimento deveria ser a principal delas. Não podemos perder esse pé na infância, para que através dela possamos nos ligar à nossa essência.
“Um ato que rompe o tempo e o espaço, inaugura um outro tempo e um outro espaço, e uma conexão que é uma conexão de vínculo: eu e o mundo. Porque a criança não vive para brincar. Brincar é viver. Ela, ali, está totalmente inteira, respondendo à sua própria vida. A vida está se exprimindo dentro dela ali” (Maria Amélia Pereira*)
O brincar é a linguagem da alma. Quando uma criança brinca está por inteira, ela por si só é um ser brincante. O brincar é essencial para o desenvolvimento dessa criança, é quando ela se ativa num movimento de dentro para fora, construindo um eixo próprio. A imagem de uma criança brincando nos remete a ideia do tempo correndo em uma velocidade outra, própria, como se nesse momento o tempo congelasse, porque neste instante a criança está inteira e plena no seu corpo, e através desse corpo, ela vai experienciar sensações, vai se modelar através do movimento.
Para uma criança, brincar é trabalho e brincar é sério, nada tem a ver com a racionalidade pela qual distorcemos o nosso fazer enquanto adultos, onde frequentemente dizemos o trabalho não é brincadeira! Por essa razão, o brincar deve ser cuidado e preparado por nós pais e cuidadores. O lugar de brincar é o templo da criança, território de sonho e encontro, tem espaço próprio. Esse lugar é a natureza, ela é o espaço de brincar por excelência, onde a criança pode interagir com os ritmos maiores, as estações do ano, as fases da lua, com os elementos primordiais da natureza.
Esse brincar referido aqui, não é o brincar direcionado, com a intervenção do adulto, mas sim aquele que brota da imaginação da criança, é um brincar espontâneo pelo qual denominamos brincar livre. O brincar livre pertence a uma outra instância, que não a instância do discurso verbal, trata-se de uma instância corporal, que surge de um movimento interno.
“Brincar espontaneamente é a base da possibilidade de ser criativo e de fazer do trabalho algo que eu me envolvo tanto quanto eu me envolvia com o meu brincar quando era criança” (Luiza Lameirão)
A criança vive completamente num mundo inconsciente e o brincar é o recurso que uma criança utiliza para elaborar as inúmeras situações em que vivencia. A partir do brincar, a criança se constrói como ser, formando sua consciência emocional e social, introjetando os hábitos e cultura do ambiente que está inserida, ou seja, brincando a criança vai dando sentido ao viver.
“Brincar é uma coisa do homem, é uma coisa do ser humano, é uma expressão. Ela vem de diferentes formas nas diferentes etapas da vida, mas ela está presente sempre” (Renata Meirelles*)
O ser brincante significa uma unidade que vivencia a conexão com seu eixo, sua essência. Aprofundar essa característica do brincar, independentemente da idade, é aprofundar o humano de cada um. A etnomusicóloga e educadora Lydia Hortélio afirma que “a revolução que falta, que é esta revolução da criança”, ela afirma que é isso que vai nos tirar do mal-estar, da falta de alegria e tristeza generalizada que a humanidade se encontra.
Acredito que a possibilidade de visitar a nossa infância constantemente, nos liga às nossas memórias de quando tínhamos a idade dos nossos filhos, fazendo delas a nossa fonte preciosa de inspiração e evolução. Isto porque, as nossas memórias sobrepõem ao ambiente, e através delas conseguiremos ativar ou acolher a nossa criança interior tão carente de atenção. Resgatar essa criança interna que vive dentro de cada um de nós deveria ser um propósito maior, em meio a uma organização de sociedade em que o lúdico é visto como um desvio à ordem, onde o ócio é frequentemente confundido com a preguiça.
O documentário Tarja Branca – A revolução que faltava, dirigido por Cacau Rhoden, nos convida a uma reflexão genuína sobre a importância do resgate à brincadeira. Logo no início temos um convite a olhar para a questão de que “a máquina da sociedade organizada do jeito que está, precisa que uma fatia considerável das pessoas, tenha que fazer coisas que não gosta durante 8 horas por dia, para que o mundo funcione…”. Como pano de fundo no contexto da cultura popular brasileira como manifestação da alegria, diversas brincadeiras são inseridas e costuradas através dos depoimentos de adultos de diferentes áreas de atuação, origens e gerações, o documentário constrói uma narrativa inspiradora e criativa na grandeza que existe por trás do ato de brincar e nos convida a resgatar esse universo lúdico e orgânico.
“Brincar é usar o fio inteiro de cada ser. Quando você está usando o seu fio de vida inteiro, você está brincando. E é profundamente sério isso” (Maria Amélia Pereira*)
O poeta, filósofo, médico e historiador alemão Friedrich Shiller, diz o seguinte: “O homem só é inteiro quando brinca, e é somente quando brinca que ele existe na completa acepção da palavra Homem”. Neste contexto, podemos nos perguntar em que lugar nos colocamos quando nos deixamos levar pelo ritmo atual que nos tira a espontaneidade, o tempo da pausa, que nos despe da criatividade e irreverência para lidar com situações rotineiras? Será que a criança que fomos se orgulharia do adulto em que nos transformamos? Não seria uma boa darmos a mão para essa criança que habita em nós e dançarmos a ciranda da vida?
Texto: Ana Laura Essado de Figueiredo – @casacandieira /@analaura.figueiredo
Mãe, Empreendedora, Formação em Pedagogia Waldorf, participante da turma 1 do Zum Zum de Mães e Colaboradora na Bee Family, comunidade de apoio que foi a grande inspiração para um um caminho de autoconhecimento e ressignificação do meu olhar para a maternidade.
Arte: Fê Moreira – @fenaessencia
Mãe, Artista, Facilitadora Gráfica, participante da turma 7 do Zum Zum e Colaboradora na Bee Family com produção visual. Acredita que a arte é um caminho de liberdade criativa e transformação pessoal.
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[*] Frases extraídas do Documentário: Tarja Branca – A revolução que falta