Fui canonizada em 16/06/2016. A data é bonita, cheia de seis até combina com Santos Reis.
Antes disso ninguém me notava, era apenas uma mulher comum e aparentemente emancipada, do século XXI.
Eis que naquela data nasceu meu filho e com ele a língua afiada do mundo:
-Aonde ela vai essa hora da noite?
-Quem será que está com o filho?
-Por que ela não dá o peito toda vez que o bebê chora?
-Por que ela gritou com a criança?
-Ela já o colocou na escolinha?
E por aí vai. A exigência em relação à minha CONDIÇÃO DE MÃE foi tão assustadoramente preocupante para a sociedade, que eu cheguei à inevitável conclusão de que a partir do momento em que eu pari fui erguida à condição de Santa. Por isso insisto: fui canonizada.
Ser Santa não é tarefa fácil nos dias de hoje, se fossemos vistas com erros e defeitos, bem humanas, a expectativa sobre o nosso maternar seria diferente, e qualquer sinal de superação: aplausos.
Agora ser perfeita, QUADRADINHA, feito um pote de margarina “sorrisos à mesa” é duro, duro feito uma pedra de gelo, que nos deforma e nos deixa engessadas, quando na verdade nossa essência é livre como uma cachoeira.
O passado explica os muros altos que construímos sobre nós. De puta à Santa, a mulher passou por diversos papéis de autoprivação. O fruto da mulher contemporânea (veremos) parece um descompasso entre a conquista pela liberdade externa e a desconexão interna.
Começamos sendo coisa, a mulher era tratada como mercadoria, domesticada para servir o homem.
Enxergavam-na com o peso do pecado original (corpo sexuado) e a Igreja teria motivos, inclusive, para “castrar” a sexualidade feminina.
A sensibilidade e intuição deveriam ser extirpadas, já que apresentavam uma ameaça ao Estado Canônico. Daí surgem os inúmeros relatos de mulheres queimadas na fogueira feito bruxas (como Joana Darc).
As crianças também não eram dignas de qualquer consideração, sem acolhimento familiar ou assistência à saúde, morriam aos montes, pois suas mães não recebiam apoio na amamentação, nem tampouco na dedicação aos filhos.
Preocupados com a mortandade infantil, a partir do século XVIII as autoridades começaram a lançar os olhos para a proteção das crianças. E a solução passava pela construção da família ideal, inserindo a mãe como serva da família.
Nesse contexto surge a figura da MÃE SANTA, erguida à condição de ser humano capaz de criar filhos saudáveis e bem educados.
Quanto mais perfeita era a mãe mais protegidos estariam seus filhos. A mãe Santa deveria renunciar à própria vida em prol da dos filhos, amamentar a qualquer custo, viver um sacerdócio solitário na chamada “casa que habita”.
Mas os ventos contemporâneos mudaram e as algemas femininas receberam chaves para a libertação:
1) as mulheres foram inseridas no mercado de trabalho, 2) os eletrodomésticos foram criados, otimizando o tempo despendido em casa, 3) o voto feminino passou a ser um direito, 4) o anticoncepcional foi lançado como símbolo da liberdade sexual, 5) a Lei Maria da Penha foi criada para conter casos de violência contra a mulher e etc.
O grito da independência foi lançado, o mundo abriu suas comportas para a revolução política, social, cultural e sexual feminina.
Conquistamos liberdade no tempo e no espaço. A civilização caminhou a favor da evolução feminina, e podemos afirmar que a maioria das mulheres (principalmente no ocidente) já estão emancipadas.
Então por que ainda hoje as mães continuam a carregar a cruz da CULPA MATERNA?
Porque a MÃE SANTA persiste em existir dentro de cada uma de nós.
Convivemos com a necessidade diária de darmos satisfação de tudo, de nos desculparmos todo o momento, de irmos contra a nossa própria existência.
É exatamente neste ponto nevrálgico que os outros entram em nossas vidas. Damos passagem para os palpites alheios, porque estamos presas nesse padrão tóxico da perfeição.
A pedra que nos atiram bate em nossa mente (de gelo), ecoa um barulho estranho e sem fim, os outros passam a existir dentro da gente, a verdade é cruel: os outros somos nós, o inimigo externo não mais existe.
Por isso, é urgente que nos transformemos em cachoeira, mulheres de nado livre ao encontro da nossa verdade. Se eu me aceito como sou a pedra jogada não bate em mim. Ela atravessa minhas águas internas, não ouço barulho na minha natureza.
É também urgente percebermos que a revolução foi prática, de fora para dentro e não de dentro para fora.
Não é simples estalarmos os dedos e mudarmos aqui dentro. O convívio social nos mostrou que quanto mais nos controlássemos mais nos daríamos bem na sociedade.
O padrão sempre foi: deixarmos de lado quem a gente é de verdade, para nos transformarmos em quem deveríamos ser.
E foi assim que pouco a pouco evoluímos por fora e nos afastamos a cada dia da nossa energia feminina de dentro.
No livro “Mulheres Que Correm Com Lobos”, da escritora Clarissa Pinkóla Éste, aprendemos que precisamos nos aproximar o máximo possível do nosso instinto selvagem.
Selvagem não no sentido primitivo, rudimentar, não se sugere que deixemos o salto alto e voltemos às cavernas.
Precisamos resgatar a energia vital instintiva que existe dentro de cada uma de nós.
A mulher tem ciclos menstruais, carrega um feto no ventre, dá a luz, amamenta; quer algo mais natural do que isso?
A mulher é natureza pura, sabe quando é hora de plantar e sente quando é hora de colher, percebe quando algo precisa nascer, e se prepara para a hora de deixar morrer.
No entanto, a mulher do século XXI deixa viver a verdadeira mulher que existe dentro de si?
Quando engravida foca no enxoval do bebê, quando o filho nasce se atenta ao que tá escrito na internet, nas redes sociais, na TV.
Escuta tudo que os outros falam, e ela mesma fala o quê?
Nos momentos de desafio não olha com os olhos de dentro; intuição, sexto sentido, sentimentos, pelo ralo se vão.
A pedra de gelo emoldada pela sociedade é tamanha que reflete em casa. Privação atrás de privação.
Acostumadas a se aprisionarem para se defenderem, o resultado tem sido esconder até o prazer, prazer de cozinhar, cuidar do bebê, entram numa disputa com o parceiro pelo que cada um tem de fazer.
E de embate em embate nos separamos não do companheiro, mas de nós mesmas.
Talvez, se começássemos a fazer as coisas do nosso jeito, o nosso parceiro passaria a fazer a parte dele também por reflexo, de nos ver e ter vontade também de fazer com prazer.
O nosso jeito é a nossa verdade, as nossas energias primitivas do querer.
Sim, estamos fartas. Eu sei. Mas a pergunta que não quer calar é: há algum problema em ser simplesmente você?
Gosto de usar minha energia feminina para cozinhar, nutrir com amor o outro me alimenta internamente. Também gosto de usar minha energia masculina para trabalhar, sinto meus pés tocarem mais firmes sobre o chão.
Há tempos, deixei minhas algemas de lado. Mas vira e mexe eu me pego presa novamente.
Espero um dia nadar pelada numa cachoeira, para me sentir parte do mundo, e não refém. Nem puta, nem santa, o que me define só eu sei, mais ninguém.
SOBRE A AUTORA:
Este texto foi escrito por Lígia Freitas, Mãe do João e Participante do Zum Zum de Mães.
@ligiafreitasescritora