Dar limites aos nossos filhos sem violência física ou verbal, seria uma utopia?

Não quero que minha filha baixe seus olhos diante dos meus e me chame de senhora, não quero que sinta que não há espaço para ela me questionar, não quero que ela me obedeça cegamente por medo ou por se sentir intimidada, não quero que ela passe por cima das suas necessidades para me agradar, não quero que ela entenda nossa relação como uma espécie de militarismo familiar, onde existem patentes e hierarquias, não quero que ela ache que não é aceita ou amada quando comete erros, pois entendo que com base na nossa relação é que ela vai construir todas as outras relações ao longo de sua vida.

Quero que ela me olhe nos olhos e me explique o que se passa, quero quem sabe que ela me convença a mudar de ideia (e porque não?), quero que ela me chame de mãe, amiga, parceira. Quero que ela saiba que em nossa casa existe uma democracia e que todos têm o mesmo direito de serem ouvidos e respeitados, o que nos difere é que eu apenas cheguei antes e experimentei mais coisas da vida, por isso quero que ela atenda a um pedido meu, por confiar no meu julgamento e que seja sempre assim enquanto ela ainda não tiver discernimento em alguma situação. Quero que ela entenda que alguns comportamentos não são e não serão aceitos, mas ela sempre, sempre será aceita. Quero que ela compreenda que é normal e que ela pode sim sentir raiva, medo, frustração, euforia, tristeza, e todos os outros milhões de sentimentos humanos, quero ser capaz de ajudá-la a nomear e a lidar com eles sem machucar ou desrespeitar os outros ou ela mesma.

Não acho que seja possível construir esse tipo de relação com gritos, castigos, ameaças, trocas e tapas… Mas como não utilizar esses métodos tão convencionais e tão aceitos dentro da nossa sociedade, sem nos tornarmos pais permissivos? Existem alguns caminhos, eu escolhi um lindo e árduo chamado Disciplina Positiva (DP), tem sido tão intenso para mim desde que descobri sobre esse método de educação. A DP equilibra a liberdade com ordem, as escolhas com limites, a firmeza com gentileza. À primeira vista me parecia uma utopia, mas há pouco tempo fiz um curso online e conheci algumas das ferramentas práticas desse método.

É um caminho lindo porquê preza empatia e o respeito pelas crianças e suas necessidades, mas é árdua porque requer uma série de desconstruções internas, nos convida a rever comportamentos que estão arraigados em nossas entranhas, requer o desapego as nossas crenças sobre o que somos e sobre como o mundo é, requer uma reforma íntima e pessoal… E no meu caso requer ainda um autocontrole em relação a minha ansiedade, porque definitivamente é um caminho a longo prazo. Uma das coisas mais valiosas que aprendi é que por traz de todo “mal comportamento” existe uma necessidade não atendida, e que o “mal comportamento” é apenas uma tentativa desastrosa da criança se sentir aceita e importante. Só isso já fez toda diferença para mim, pois me fez olhar com outros olhos os desafios de comportamento que minha filha vem apresentando.

Terrible Two” terrível mesmo é essa palavra que escolheram para definir essa fase!  

Esse conceito tem sido fundamental aqui em casa, minha filha está atravessando aquela fase conhecida como “terrible two”, mas sou uma das que não concorda com esse termo, apesar de ser uma fase desafiadora e de estar sendo muito difícil, existe uma beleza por traz do que está acontecendo ali na superfície. Estar atravessando essa fase significa que ela está começando a se dar conta dos seus sentimentos, começando a ser ver como um indivíduo único, começando a vivenciar sua independência, começando a olhar e reconhecer a si mesma por dentro, e se isso não é incrível de se ver e de se acompanhar no desenvolvimento de uma criança, eu já não sei o que mais pode ser!  E nesse caos interno de sentimentos, que ela não sabe ainda lidar ou explicar, acabam acontecendo os ataques de fúria, os choros incontroláveis, as crises por “pequenos” impasses e os nãos para tudo (fralda, roupa, comida, etc….). Tem sido uma ótima oportunidade de praticar tudo que aprendi na teoria, mas confesso que a pratica é bem mais difícil do que eu gostaria de admitir.

Tenho tentado me colocar no lugar dela, entendendo que ela acabou de chegar nesse mundo, se frustra e se chateia com suas limitações o tempo todo, ainda comete muitos erros em tentativas desesperadas de se sentir pertencente a esse mundo. Me pergunto como eu gostaria que as pessoas que eu mais amo e confio no mundo me conduzissem em uma fase como essa, será que eu gostaria que gritassem comigo na frente de outras pessoas e dissessem que eu faço tudo errado? Que meus sentimentos não são importantes ou adequados? Ou pior, que achassem meus erros imperdoáveis e meus sentimentos inaceitáveis, a ponto de me agredirem fisicamente ou verbalmente? Claro que nem eu nem ninguém gostaria de ser tratado assim, o que nos leva a crer que uma criança merece ser tratada dessa maneira? O que nos leva a acreditar que ensinamos algum valor através da violência? São perguntas poderosas que devemos fazer a nós mesmos…

Não gostaria de sentir que está sendo terrível para alguém a convivência comigo, gostaria que me olhassem nos olhos e me dissessem que sou compreendida, que meus sentimentos são reconhecidos e validados, que me oferecessem ajuda e opções para lidar com minhas emoções de maneira adequada. Que me explicassem onde e porque eu errei e que me encorajassem a pensar em um jeito de solucionar o problema que eu possa ter causado. Que me abraçassem e me oferecessem acolhimento, que entendessem que os momentos de descontrole são os que eu mais preciso de amor. Gostaria que me ajudassem a entender o mundo a minha volta, que captassem aquilo que ainda não sei explicar com minhas próprias palavras, mesmo me esforçando tanto.

Estou em constante treinamento…

Mesmo convicta de qual é o meu caminho, mesmo não existindo a menor possibilidade de voltar atrás, por vezes me sinto desanimada, é tão mais fácil e imediato resolver no grito, é tão mais fácil me aproveitar da ingenuidade e da falta de experiência dela e ameaça-la para que ela me atenda ou me obedeça prontamente.  Na ansiedade em resolver rapidamente algum desafio de comportamento dela, as vezes me pego repetindo velhos padrões e esqueço que é um trabalho continuo e a longo prazo, confesso que as vezes faço tudo em desacordo com o que estou aqui escrevendo para vocês, admito que não é fácil, preciso ainda de muito treinamento….

Nesses momentos de desanimo, procuro me lembrar dos momentos especiais que esse caminho já me proporcionou. Lembro em especial de um dia que fui busca-la na escola, tirei da mochila um pacotinho de biscoito de polvilho e dei na mãozinha dela, só restavam umas 3 ou 4 unidades, de repente ela começou a gritar e chorar enlouquecidamente, “só” porque um dos biscoitos tinha caído no chão, enfurecida ela jogou longe os biscoitos restantes, começou a se mexer tão vigorosamente no carrinho que quase o derrubou, gritando a plenos pulmões que queria sair. As pessoas na rua começaram a me olhar, eu nem liguei, nesse dia eu estava especialmente inspirada e determinada, primeiro me acalmei e pensei: – Esse biscoito era muito importante para ela, não tinha nenhuma importância para mim, mas era valioso para ela, eu não precisava saber o porquê, ela ainda não saberia me explicar, eu só precisava entender e aceitar que para ela era muito importante.

Parei o carrinho e peguei ela no colo, ela se debatendo com força, por um momento achei que ela cairia do meu colo, mas com a voz calma disse no ouvido dela: – Eu sei filha, eu te entendo você está com raiva e chateada, aquele biscoito era importante para você, mas agora eles caíram no chão não dá mais para comer né? Podemos comprar outro pacote ali na frente naquela padaria, o que acha? Você se sentiria melhor? E ela gritava: – Não, não, eu quero aquele, eu quero aquele! Eu repetia tudo de novo:  – Eu sei filha, eu te entendo…. e ela continuava gritando que não, porem cada vez se debatendo menos, e eu repetindo tudo, nem sei dizer quantas vezes repeti a mesma coisa, e ela ia cada vez relutando menos, até que parou totalmente de se debater, aceitou enfim o meu colo e meu abraçou bem forte, colocou a cabeça no meu ombro e chorou, chorou um choro dolorido que nunca imaginei que uma criança da idade dela fosse capaz de expressar, era um choro controlado com lagrimas pesadas e sofridas.

Ficamos alguns minutos abraçadas, conectadas de verdade, percebi que aquele biscoito não foi o real motivo pelo seu descontrole, talvez a frustração de o ter derrubado com suas mãozinhas ainda pequenas e pouco habilidosas, ou quem sabe um stress acumulado ao longo do dia, prontinho para ser despejado em quem ela mais confia e ama no mundo, podia ainda ser simplesmente saudades do aconchego da nosso Lar ou do toque do meu corpo. Mas isso já não importava, ela tinha conseguido reconhecer e expressar primeiro sua raiva e depois sua tristeza e enquanto ela chorava eu dizia: – Tudo bem filha, mamãe está aqui, pode chorar, pode chorar… Então ela foi parando, parando e algo ainda mais inusitado aconteceu, ela pegou meu rosto olhou para mim e disse: – Ive já está calma, desculpe mamãe, e eu respondi extremamente emocionada: – Tudo bem minha filha, vamos agora jogar os biscoitos no lixo, mamãe sabe bem como é, acontece da mamãe se sentir assim as vezes também.

Fomos para casa, ela estava bem mais calma, fui explicando que ela não devia ter jogado os biscoitos restantes no chão, primeiro porque suja a rua e segundo porque o biscoito fica muito sujo e faz mal para a barriguinha comer coisas sujas e que por isso ela acabou ficando sem nenhum biscoito para comer. Sugeri de passarmos na padaria e comprarmos mais um pacote (como eu havia oferecido antes), mas ela acabou preferindo umas bananas que viu no hortifrúti vizinho a padaria (adorei ela ter feito essa escolha mais saudável ☺).

Naquele dia fui dormir feliz e confiante, lembrei de uma frase de um filosofo Persa chamado Rumi, que diz:  “Para além das ideias de certo e errado existe um campo e é lá que eu me encontrarei com você” e naquele dia eu me encontrei com a minha filha nesse campo. Ainda é difícil para mim chegar até lá, as vezes ela fica sozinha me esperando, mas tenho consciência que estou em constante treinamento, acredito que a cada dia vai ficar mais fácil e mais espontâneo me encontrar com ela lá, tenho esperança que é nesse campo que vamos construir nossa história e a nossa relação.

Este texto foi escrito por: Vivian Pessoa, mãe da Ive de 2 anos e 5 meses e participante da turma 5 do Zum Zum de Mães.

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