A criança, a palavra e o brincar

Em tempos em que nossa comunicação e linguagem se tornaram tão rápidas e instantâneas, com a possibilidade de se interagir com facilidade com tantas pessoas por meio das redes sociais, trago aqui hoje uma reflexão a respeito do poder evocativo das palavras, do simbolismo que elas subliminarmente trazem e palpites de como nossas crianças integram essas palavras.

Minha filha está naquela fase de aprendizado da linguagem oral e é parte desse processo conhecer as palavras e repeti-las, tentando trazer significado e o simbolismo que vai ajudá-la a elaborar esse processo de linguagem. Nas minhas observações desse processo, pude notar como a palavra tem um poder forte no imaginário da criança. Ela evoca uma estrutura e sobre esta algo começa a ser construído e sedimentado. E nessas construções vamos moldando, como uma argila, a percepção de mundo da criança. Como se ela delineasse e construísse seu próprio universo e visão de mundo, sua percepção de realidade. E nesse sentido, observo a relevância do cuidado e do carinho na escolha e uso das expressões e gestualidades cotidianas. A criança observa de um campo muito aberto, de um lugar de muita clareza e atenção, com uma avidez pelo aprendizado, e nem sempre temos clareza do quão elas captam e assimilam esse campo de nós a todo instante.

Trazendo para esse contexto a nossa relação e a da criança com a brincadeira, observo como para a criança a brincadeira é quase como respirar… O brincar é como ela experimenta o mundo… E nesses momentos me questiono o que realmente quero dizer quando às vezes me pego repetindo a expressão: “Isso não é brincadeira, não estou brincando”, ou algo do tipo “agora é sério”. E também até que ponto o peso dessas frases, que já estão tão totalmente enraizadas no nosso corpo, tão bem amalgamadas com a argila do tempo, nos faça levar uma vida com uma seriedade que beira a rigidez, trazendo estresse e frustração. É como se tivesse aprendido em alguma época da minha vida, talvez na transição da infância para a adolescência, que a brincadeira é algo errado, “infantil”, coisa de criança. E que para levar a vida a sério, com responsabilidade, não houvesse espaço para brincadeiras. Pesquisando o significado que hoje culturalmente atribuímos à brincadeira de passatempo, diversão sem sentido, agir com falta de responsabilidade, observo o quanto está distante do seu sentido original, etimológico, de encantamento. E como esse significado original foi ao longo do tempo sendo esquecido…

Por muitos anos, a brincadeira tem sido vinculada à falta de responsabilidade ou a algum contexto de que isso não é “a realidade” ou não é importante. Mas olhando para a importância do contexto do brincar e sem querer entrar no mérito de pesquisas e estudos, de como isso é importante para a formação e para a significação da infância, as memórias mais alegres de qualquer pessoa a respeito de sua infância quase sempre inclui algum tipo de brincadeira. Olhando esses aspectos, me pergunto, será que ao classificarmos a brincadeira no rol de coisas não sérias ou irresponsáveis estamos sendo leais com algo que numa parte de nossa vida nos trouxe tanto aprendizado?

Mas aprendemos que “a vida não é brincadeira”! Será que não poderia ser? Pelo menos um pouco mais? E se olharmos para a vida cotidiana como uma sucessão de experiências com maior ou menor sentido, que algumas vezes tentamos entender com o racional, outras vezes nos debatemos, e outras simplesmente vivemos, respiramos até esperar passar. Cada dia em que acordamos, é uma experiência a ser vivenciada, assimilada, amalgamada. Se nos permitimos olhar um pouco para trás e tentar encontrar algum significado naquelas situações que rotulamos como “ruins”, perceberemos que de alguma forma isso nos trouxe novas consciências e novas formas de experimentar. E a intenção com que plantamos essas experiências diz muito sobre como elas serão assimiladas, como um brincar livre, leve, e revigorante ou com uma rigidez, correria e frustração.

Seria possível, quem sabe, brincar e ao mesmo tempo ter seriedade na vida? Brincar, no seu sentido original, de leveza, de encantamento, e não na perspectiva que se acabou catalogando na nossa história de sociedade de que brincadeira é zombaria ou passatempo. Essa mesma perspectiva que acaba nos tornando pessoas sérias, frustradas com a vida, esperando sempre pelo fim de semana, feriado, férias; ou seja, como se estivéssemos sempre “em aula esperando pela hora do recreio”. Ansiamos pela copa, pelo carnaval, pelas festividades de fim de ano, simplesmente porque ansiamos por brincar… Por estar leve, por não ter que ser tão sério, mas não necessariamente deixar de ter responsabilidade. Levar a vida nessa angústia da espera quase sempre traz muito peso e ansiedade. E, enquanto isso, continuamos repetindo para os nossos filhos “Isso não é brincadeira”.

Observando o contexto atual tecnológico em que vivemos, um dos grandes desafios que percebo é o simples estar presente. São tantas informações e estímulos a todo o tempo, acesso e disponibilidade de internet a todo o tempo, o que é maravilhoso, mas noto uma ansiedade em estarmos atentos a tudo que acaba muitas vezes nos impedindo de estar presente. Em sua etimologia de origem latina, o brincar vem de brinco, laço, vínculo. E o que é o estado de presença, senão simplesmente estar conectada a esse momento do agora?

Como seria então virar essa chave e viver a rotina diária com a perspectiva da brincadeira? Como trazer esse encantamento, essa magia, esse ”vincire”, vínculo com o momento presente, nos permitindo simplesmente estar nesse aqui e agora e experimentar o quer que esteja acontecendo? Seja uma alegria, uma brincadeira, um sorriso do nosso filhote ou uma birra, apenas estando presente e experienciando, sem tantos julgamentos de certo e errado, sem justificações.

É a pergunta que me faço todos os dias… E cada dia ela tem uma resposta diferente…Uma oportunidade para resgatar uma parte fundamental da brincadeira que joguei no fundo do armário por achar que era “errado” usar: a imaginação. Essa mesma imaginação que me faz agora escrever esse texto; que auxilia a inventar um cardápio improvisado no almoço, que faz criar brincadeiras dentro do avião. Mas é um desafio porque no processo de crescimento a gente também aprende que “Não se pode viver no mundo da imaginação”, mas ao mesmo tempo somos solicitados a ter habilidades criativas e a inovar a todo instante. Então, que tenhamos muita imaginação e leveza da brincadeira para saber encontrar um caminho entre essas dualidades da vida.

Alguns dias esse caminho vem por meio de uma música, outros por meio de um abraço, outros ainda simplesmente pelo silêncio. Cada dia traz o seu tom, a sua vibração, seu clima… Cada dia torna-se único… Com infinitas possibilidades de novos caminhos e experimentação. E com as crianças isso se torna uma experiência ímpar, porque as crianças amam curtir essas possibilidades. E mais importante, mais do que qualquer brinquedo, ou mesmo brincadeira, as crianças amam a presença, no aqui e agora. E quem não ama?

Este texto foi escrito por Danila C.C. Fleury, Mãe da Clara  (4 anos), Farmacêutica, Servidora Pública, Investigadora Autônoma de Autoconhecimento e Brincar e participante do Zum Zum de Mães.
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